Durante o seu cadastro em uma plataforma, você realmente sabe como os seus dados podem ser utilizados? Ou melhor, se enquanto usuário, está sendo devidamente respeitado? Através de uma análise sobre Plataformização (Poell, Nieborg, Van Dijck), refletiremos sobre as perguntas que pairam sobre nossas relações com as plataformas digitais.
No primeiro episódio da 6ª temporada de Black Mirror, a personagem Joan (Annie Murphy) descobre que sua vida virou um drama da plataforma Streamberry (serviço de streaming). Com isso, toda a sua rotina é retratada na série "Joan é Péssima", onde o seu cotidiano e comportamento são articulados para serem vistos de forma negativa, colocando-a como uma pessoa péssima.
Dessa forma, compreende-se o poder da narrativa, pois a forma como a vida da Joan é retratada na versão fictícia destrói a vida dela na realidade.
Apesar da revolta e tentativa em denunciar a plataforma de streaming "Streamberry" por utilizar sua imagem de forma indevida, a personagem descobre que a autorizou após concordar com os termos e condições durante o cadastro.
Uma situação semelhante à que Joan sofre no episódio aconteceu na vida real com o Dr. Don Shirley, pianista negro e um dos músicos mais emblemáticos dos Estados Unidos, no filme Green Book.
Apesar dos três Oscar vencidos, o longa que traz o racismo como ponto central da trama e é inspirado na suposta história da amizade entre o pianista e seu motorista, Tony Vallelonga, não tem sua narrativa focada no Don Shiley e sim no Tony. O motorista que dirigiu para ele uma única vez, é extremamente racista, mas acaba sendo retratado na história como um exemplo de heroísmo e redenção, enquanto o musicista é colocado como arrogante, covarde e que odeia a própria cultura. Assim, os produtores do longa-metragem ganharam muito dinheiro destruindo, através dessa narrativa, a memória desse ícone negro, trazendo prejuízo e hate para ele e sua família (que não é nem abordada na história).
Além de Joan, o episódio também nos apresenta a atriz que interpreta a Outra Joan (Salma Hayek) na série do streaming assinado por Joan. A personagem vendeu a sua imagem para que fosse reproduzida em inteligência artifical, possibilitando que o seu rosto fosse aplicado em cenas diversas sem necessariamente estar gravando no set.
Porém, Salma Hayek (atriz que representa Joan na série do Streamberry) também se vê violada pela plataforma, visto que a narrativa toma um rumo desagradável e prejudica a sua imagem como artista. Ainda assim, ambas as personagens centrais são ignoradas e desrespeitadas pela organização do aplicativo de entretenimento. Caindo, dessa forma, em mais um dos becos sem saída presentes nas regulamentações duvidosas das plataformas.
Segundo Poell, Nieborg e Van Dijck no artigo "Plataformização" (2019), uma plataforma é definida como a "penetração de infraestruturas, processos econômicos e estruturas governamentais das plataformas digitais" em diferentes setores e esferas da vida. Neste artigo, os autores apontam as problemáticas presentes nesta abordagem, pois a integração das plataformas na sociedade não pode prejudicar a cidadania dos seus usuários, trabalhadores e/ou telespectadores.
Salma Hayek, por exemplo, foi a personagem que poderia ser lida como uma "trabalhadora de plataforma" (visto que sua imagem era propriedade do serviço de streaming). Há outros trabalhadores de plataforma que estamos mais habituados, como os motoristas da Uber, entregadores de delivery, entre outros.
Esses trabalhadores geralmente não são considerados funcionários das empresas de plataforma, mas sim trabalhadores independentes, o que afeta seus direitos trabalhistas e benefícios. Sendo assim, é extremamente necessária uma atualização na regulamentação destes profissionais, garantindo direitos dignos, trabalhistas e humanos, que os protejam da exploração, assim como resguarde a sua segurança e a sua imagem.
Os Termos de Uso da "Streamberry" (streaming fictício do episódio de Black Mirror e que faz alusão à Netflix) concedia à plataforma o direito de criar a série sobre sua vida, além de ter acesso a personagem e a seus momentos pessoais, assim como Salma Hayek autorizou o livre uso de sua imagem quando tornou-se uma das trabalhadoras da plataforma.
Atualmente, o Termo de Uso, da maneira como é mostrado no episódio, tem sua finalidade desviada por infringir os princípios da sua finalidade, determinados na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Essa lei, que entrou em vigor em setembro de 2020, representa um marco histórico na regulamentação sobre o tratamento de dados pessoais no Brasil, tanto em meios físicos quanto em plataformas digitais, como para instituições públicas e privadas.
Apesar disso, o trabalho por aplicativo ainda permanece sem regulamentação profissional no Ministério do Trabalho e Previdência, conforme notícia da Agência Brasil.
Através desta reflexão, observamos como o episódio narra a história de duas mulheres, uma consumidora e outra trabalhadora de plataforma, onde as vidas viram um inferno devido uma regulamentação desumanizada e bem realista quando comparada ao nosso universo real.
A Netflix, aproveitando o hype do episódio, lançou uma experiência única chamada “Você é Péssimo”, onde os fãs também podem ser “a estrela do show” do Streamberry.
Para surfar nesta onda, aqueles que desejam participar devem concordar com um Contrato de Termos de Uso e Declaração de Privacidade de nove páginas, semelhante ao de Joan, que dá à Netflix o direito de usar seu nome e imagem em material promocional relacionado à experiência.
Embora seja polêmica e controversa essa ação de marketing, ela tem sido bem sucedida, dando bastante visibilidade tanto para a série como para a própria Netflix.
Desse modo, para participar da brincadeira, por sua própria conta e risco, visite o próprio site da Streamberry e seja você mesmo uma pessoa péssima!
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